Sobre escrita afetiva
A primeira personagem que criei fui eu mesma. Uma menina assustada. A escola lhe parecia um labirinto, as pessoas a estranhavam, se perdia pela cidade que não era a sua.
Lápis e papel a acalmavam. Escrevia porque precisava conversar.
As palavras lhe vazavam. Uma dor manchada de alívio, como quando se expele um espinho. Sua biografia ia sendo escrita sob o desamparo dos outros e na minha companhia.
Gostava da cara confusa do carteiro quando via o mesmo nome no destinatário e remetente. A menina escrevia cartas para si mesma e postava em envelopes com as cores do seu país.
A cada nova carta, as palavras iam tomando gosto umas pelas outras. Eu caminhava até o correio temperada de amigos e amores inventados. Minha personagem me fantasiava.
A última carta escrita com caligrafia infantil pretendia dar-me um destino. A menina imaginava, orgulhosa, que um dia teria o corpo mais crescido e sabedoria para canalizar o vazamento das palavras, conduzindo-as docemente para onde pudessem germinar poesia.
Mas, negligenciando a carta e o desejo, meu corpo cresceu, talvez demais ou em outra direção.
Venho escrevendo em papéis de ganhar dinheiro e pagar impostos.
Acordos, contratos, relatórios.
Palavras disciplinadas e pontuais.
Anos de responsabilidades empilhadas.
Petição em cima de recibos, certidões amassando os autos.
Papéis sobrepostos encobrindo seus antecessores.
Dando por mim, depois do longo silêncio entre origem e destino, decido retomar a correspondência com aquela minha personagem. E com tantos outros que ainda me esperam para nascer.
Victoria Cherniavsky