Exercício sobre os óculos

September 16, 2018 Off By Mi Prazeres

Já tive raiva, hoje compreendo. As ranhuras do tempo me ensinaram, me fizeram perceber…
Minha história começa no dia em que Ele me escolheu. Lembro bem que era um dia de inverno, a superfície de vidro em que eu ficara apoiado durante meses estava especialmente gelada naquela manhã, aquela espera inerte naquele lugar insípido me deprimia.
Quando Ele me pegou senti o calor de sua pele. Ele me alisou, me levou até seu rosto, recordo bem a delicadeza de seus dedos me deslizando sobre seu cabelo macio, me aconchegando atrás da caverna oculta que suas orelhas formavam. Ali era meu lugar! Eu me acoplava perfeitamente a seu rosto, mais do que isso, me incorporava a todo seu ser, passaríamos a comungar da mesma visão.
Os primeiros anos foram de euforia. Eu era fundamental, Ele me queira a todo momento, me necessitava como sedento no deserto. Comigo Ele podia enxergar a pontinha da calcinha das meninas quando cruzavam as pernas, e mais, Ele podia perceber as minúcias dos desenhos da calcinha, os contornos, as cores… Se possível, Ele gostaria até de me usar para ver através da calcinha, antever o que ali se escondia.
Eu lhe permitia ver cada detalhe das folhas da grande árvore no seu jardim. Antes de mim, era apenas uma massa verde, um borrão. Agora se encantava com cada veia das folhas, suas pequenas imperfeições, via até a trilha de baba translúcida deixada pelas lagartas que seguiam seu caminho rumo às folhas mais altas e apetitosas.
Eu previa que qualquer dia Ele iria até querer dormir comigo, não que eu tivesse ciúmes das meninas que habitavam seus sonhos proibidos, mas porque Ele definitivamente não me largava, dependia de mim, estava ligado a mim não pelo olho, mas pelas vísceras.  
Eu ansiava dar-lhe mais, dar-lhe uma visão perfeita, uma compreensão maior, uma percepção total.
Com o passar dos anos, foi me abandonando aos poucos.
Da primeira vez, assustei quando me arrancou com força, me jogou na cama com rancor, disse palavras amargas. Parecia ser culpa minha que Ele não estivesse vendo o óbvio! Mas logo percebi que Ele não estava me responsabilizando por sua cegueira, Ele só me afastou porque eu atrapalhava a passagem da água que saía de seus olhos.
E essa cena se repetiu muitas vezes, por longo tempo, se repetiu tanto que às vezes Ele demorava para me tirar do rosto, fiquei tão cúmplice de seu pranto que Ele nem se envergonhava mais. Só me afastava quando já estava embaçado demais.
Envelhecemos nesse desaguar.  
Dizem que depois do desassossego vem a calmaria, não para mim. O mar agitado tornou-se maremoto.  
Não fui capaz de aceitar quando, mesmo em períodos de seca, Ele me repelia, me tirava do rosto sem motivo, me esquecia em cima de criados mudos e aparadores tão frios como antes de conhecê-lo.
Eu me enfurecia em silêncio. Como Ele pôde ter perdido o interesse na visão perfeita? Por que já não valorizava os detalhes? Como conseguia viver sem a precisão do foco que só eu podia lhe dar?
Certa vez o ouvi falando sobre a beleza do escuro, sobre olhar para dentro. Palavras sem sentido.
Demandou tempo. Precisei, eu próprio, gastar minhas lentes até o fim para entender o quanto elas são prescindíveis.
Mais do que minúcias, detalhes, clareza, Ele e eu passamos a apreciar o mistério da noite, as imagens inventadas, uma visão imprecisa. Enxergar menos e imaginar mais.
Já velho e riscado, hoje me encontro reconfortado na escuridão de uma elegante caixa ovalada, recoberta com fino veludo e cheiro de passado.