Uma relíquia. Um texto de Milton Santos publicado em
11 de março de 2001 na Folha de São Paulo. Reproduzimos na íntegra abaixo.
O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade. O triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a idéia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente. Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história.
Sem dúvida, a maioria das pessoas, das empresas e das instituições não se utiliza das velocidades exponenciais tecnicamente possíveis e muitos continuam a sobreviver na lentidão, mas isso não impede que o ideário dominante, em todos os arcanos da vida social, sugira uma existência com ritmos cada vez mais acelerados. Paralelamente, aquela questão do “fixo tecnológico”, fulcro de tantas discussões teóricas nos anos 60 e 70, retoma atualidade.
Dizia-se que a entrada de um país na linhagem das nações desenvolvidas dependia da aceitação de condições tecnológicas então consideradas modernas, sem as quais a presença atuante no plano internacional seria impossível. Mas havia, também, os que discutiam e recusavam essa premissa, afirmando que tecnologias intermediárias seriam capazes de dar conta, satisfatoriamente, do processo de crescimento de um determinado país. Era um tempo diferente do atual e no qual o debate civilizatório impedia o triunfo do pensamento único.
Fuga para a frente Hoje, graças às novas realidades da presente globalização, aquela tese do “technological fix” se robusteceu e se impõe com muito mais força, já que a batalha encarniçada entre os agentes dominantes da economia os leva à busca desesperada de tecnologias “up-to-date”, por sua vez necessitadas de adaptação urgente -técnica ou organizacional- cada vez que uma nova conquista científica é obtida.
A necessidade, sempre presente, de competir por um mercado que é uma permanente fuga para a frente conduz a essa espécie de endeusamento da técnica, autorizando os agentes vitoriosos a manter sua posição de superioridade sobre os demais. Na medida em que as grandes empresas transnacionais ganharam dimensões planetárias, a tecnologia se tornou um credo generalizado, assim como a velocidade. Ambas passam a fazer parte do catecismo da nova fé.
Todos acabam aceitando como verdade essa premissa. Ser ultramoderno impõe-se como uma ilusão generalizada, e o tempo desejado é o tempo da nova técnica. Seu ideário se alimenta de uma construção ideologia elaborada de forma sistêmica, mas que é apenas diretamente funcional para um pequeno número de atores privilegiados. De fato, somente algumas pessoas, firmas e instituições são altamente velozes. O resto da humanidade, em todos os países, vive e produz de uma outra maneira.
Essa velocidade exacerbada, própria a uma minoria, não tem e nem busca sentido. Serve à competitividade desabrida, coisa que ninguém sabe para o que realmente serve, de um ponto de vista moral ou social. Fruto das necessidades empresariais de apenas um punhado de firmas, tal velocidade põe-se a serviço da política de tais empresas. E estas arrastam a política dos Estados e das instituições supranacionais. E aí se situa a matriz de um grave equívoco. Porque, vista historicamente, a técnica não é um absoluto.
Aliás, em seu estado absoluto, a técnica jamais foi realizada. Todas as vezes em que deixa de ser um capítulo da ciência para transformar-se em história, ela se relativiza. Por isso, a velocidade hegemônica atual, do mesmo modo que aquelas que a precederam -e tudo o que vem com ela e que dela decorre- é apreciável, mas não imprescindível. Não é certo que haja um imperativo técnico, o imperativo é político. A velocidade utilizada é um dado da política, e não da técnica.
Daí a emergência possível de uma pergunta de ordem prática: será mesmo impossível limitar a velocidade dos mais velozes, isto é, dos mais fortes? Ou, em todo caso, poderíamos limitar essa força dos mais fortes?
No passado, a ordem mundial pôde, em diversos momentos da história, construir-se mediante a não-obediência aos ditames da técnica mais moderna.
Os cem anos que se confundem com o século do imperialismo abrigaram grandes conjuntos políticos territoriais vivendo e convivendo segundo “idades” técnicas diversas, ou melhor, segundo combinações desiguais dos avanços técnicos possíveis. O Império Britânico estava à frente quanto à posse e ao uso das tecnologias então mais modernas, e os outros impérios vinham na rabeira, depois e depois. Mas isso não os impedia de conviver. O exercício da política permitia enfrentar os conflitos internos e sugerir, cada vez, novas formas de equilíbrio.
Aliás, de um ponto de vista internacional, o que se passa dentro de cada império parece se espelhar em relação ao que se verificava externamente. A política comercial aplicada no interior desses grandes conjuntos territoriais, fragmentados e espalhados em diversos continentes, é que acabava permitindo a possibilidade de sua harmonização, malgrado suas diferenças de poder, dentro do conjunto do mundo ocidental (1). O notável é que o balanço desses cem anos que precedem a atual fase de globalização permite, apesar das guerras que os marcaram, reconhecer, junto aos inegáveis progressos técnicos e ganhos econômicos, a manifestação também de progressos políticos e éticos, com a ampliação da idéia de humanidade solidária e de sociedade nacional solidária, mediante a conquista e a busca de aperfeiçoamento de um estatuto político eficaz na construção de uma vida social civilizada, nos planos nacional e internacional.
Casa coletiva
O progresso técnico não constituía obstáculo ao progresso moral, quando havia, paralelamente, progressos políticos. Assim, o problema fundamental é o de retomar o curso dessa história, recolocando o homem em seu lugar central no planeta. Uma das condições para alcançá-lo parece ser o reconhecimento da realidade dos territórios tal como sempre foram utilizados pela população como um todo.
São usos múltiplos marcados por diferentes velocidades e pela utilização de técnicas as mais diversas, maneira de deixar que o território nacional constitua uma verdadeira casa coletiva, um abrigo para todos, empresas, instituições e homens. Somente dessa forma, soluções de convivência plenas ou sequiosas de humanidade são possíveis.
Não se trata de pregar o desconhecimento da modernidade -ou uma forma de regresso ao passado-, mas de encontrar as combinações que, segundo as circunstâncias próprias a cada povo, a cada região, a cada lugar, permitam a construção do bem-estar coletivo. É possível dispor da maior velocidade tecnicamente possível no momento e não utilizá-la. É possível fruir da modernidade nova, atual, sem ser obrigatoriamente o mais veloz.
Numa situação em que se combinam técnicas e tempos e velocidades diferentes, sem que um deles obrigatoriamente arraste os demais, se impõem forçosamente soluções políticas que não passem obrigatoriamente pela economia e suas conhecidas paixões inferiores.
A velocidade não apenas se define a partir do tempo utilizado para superar as distâncias. A questão é a de encontrar, para a palavra velocidade, equivalentes na prática social e política.
Acreditamos que a noção de cidadania se possa prestar à discussão aqui proposta, desde que a consideremos em sua tríplice significação: cidadania social, econômica e política. Quanto mais se afirmam essas diversas vertentes da cidadania, maior é a garantia de que a “velocidade” pode ser limitada, ao mesmo tempo em que os benefícios da modernidade encontram a possibilidade de uma difusão democrática. Será dessa forma que, num primeiro momento, serão reforçadas as individualidades fortes, provocando a necessidade de uma informação veraz, criando limites à propaganda invasora e enganosa, tudo isso se dando paralelamente a uma renovação do papel do Estado nacional.
Será, também, por meio desse processo que o mercado interno será revigorado e os mercados comuns entre países serão horizontalizados, abrindo caminho para que o dinheiro regresse à sua condição histórica de equivalente universal e abandone a sua função atual de regedor exclusivo e despótico das relações econômicas. Pelas mesmas razões, aquilo a que chamamos de “informalidade da economia” melhor cumprirá suas funções econômica, social e política sem a necessidade de formalizações alienantes e fortalecendo o papel da cultura localmente constituída como um cimento social indispensável a que cada comunidade imponha sua própria identidade e faça valer, a um ritmo próprio, o seu sentido mais profundo.
Será um mundo no qual os que desejarem ter pressa poderão fazê-lo livremente e no qual os que não são apressados serão fortalecidos, de modo a poder pensar na reconstrução da paz mundial e na luta por uma convivência social digna e humana dentro de cada país.
Nota
- Milton Santos, “A Natureza do Espaço” (ed. Hucitec), págs. 36, 37 e 152, 153.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, autor, entre outros livros, de “Por uma Outra Globalização” (Record).