Se hoje Carlo Petrini, 66, o italiano fundador Slow Food, pudesse eleger seu maior desafio, ele diria que é tornar os consumidores responsáveis por suas escolhas alimentares —e mostrar-lhes o quão política são essas decisões.
O movimento, que se apõe à padronização dos gostos e à perda da cultura gastronômica, imposta pelo modelo norte-americano, avançou para mais de 160 países ao longo de quase 30 anos.
Hoje, o Slow Food vê na América Latina um “terreno particularmente fértil”, que conjuga biodiversidade, cultura alimentar antiga e ambiente propício para movimentos sociais.
Texto original publicado por Luiza Fecarotta em 08/06/2016 na Folha de São Paulo.
Sören Schuhmacher – 1º.jul.2013/Divulgação | ||
Homem segura umbus, fruto em risco de extinção que integra a Arca do Gosto, projeto do Slow Food |
No Brasil, onde fincou-se desde 2000 e envolve uma rede de 50 mil ativistas, o Slow Food acaba firmar sua primeira articulação política nacional.
Em abril, passou a vigorar uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que prevê desenvolver a agricultura familiar nas cinco regiões brasileiras, junto a universidades federais, e reforçar a acessibilidade a um alimento bom (“saudável e prazeroso”), limpo (“produzido com um baixo impacto ambiental e respeitando o bem-estar animal”) e justo (que respeite “o trabalho de quem produz, processa e distribui os alimentos”).
Trata-se de um dos programas “mais inclusivos, impactantes e geradores de valor para o campo e para as famílias ligadas diretamente à produção alimentar”, diz Petrini. Leia entrevista.
Folha – O sr. diz que “a política mais importante passa pela comida”. Como se faz política por meio da comida?
Carlo Petrini – As escolhas dos alimentos são fundamentais para determinar a agricultura, as culturas e a política. Se uma pessoa escolhe comer carne todos os dias e comprá-la em um supermercado, vai apoiar a pecuária industrial com tudo o que tal implica (sem bem-estar animal, transgênicos, exploração de trabalhadores nas fábricas, aumento das emissões de gases de efeito estufa, desertificação da Amazônia).
O que é a “crise do sistema alimentar mundial”?
O modelo agroalimentar industrial moderno tem tido impacto devastador sobre o ambiente e uma perda global da diversidade, tanto biológica e cultural. A produção agrícola tem adotado o modelo de produção das indústrias, cujas principais características, como uso crescente de produtos fertilizantes e pesticidas e avanço das monoculturas, causaram consequências graves para o ambiente e ameaçam a viabilidade econômica dos pequenos produtores.
E como sair da crise?
É preciso pensar, com urgência, em novas formas de agricultura. Usar métodos sustentáveis capazes de compartilhar o conhecimento que ainda não tenha sido excluído da agroindústria; retornar às áreas produtivas onde a agricultura foi abandonada porque não era mais barato de acordo com critérios industriais; preservar, reforçar e disseminar as práticas tradicionais; restaurar a dignidade e as oportunidades para aqueles que foram marginalizados pela globalização.
O que significa quando o sr. diz que “a humanidade não reconhece o valor da alimentação”?
Em um sistema alimentar cada vez mais dominado pela lógica do mercado, estabeleceu-se a crença de que os alimentos devem estar disponíveis a baixo custo, independentemente do seu valor intrínseco. Esse modelo provocou o boom da indústria agroalimentar e quebrou o vínculo entre os que produzem a comida e quem o consome. Há um equívoco que a alimentação saudável é cara e que, em tempos de crise, a única solução é o fast food ou produtos processados.
Tomo emprestada uma pergunta que Michael Pollan se faz: “O que aconteceria se fôssemos pensar na comida menos como um objeto e mais como uma relação?”
Infelizmente, na era do consumismo, pessoas menos conscientes não perguntam de onde vêm os alimentos que compram. Devemos amar a terra a 360 graus: o que comemos tem um impacto sobre o futuro do planeta, e nossas escolhas diárias (reciclagem, apoio de campanhas ambientalistas) vão afetar o que comemos.
E como mudar a relação do consumidor com a comida?
A melhor maneira é comparar os alimentos produzidos por métodos industriais intensivos e os por métodos tradicionais: em primeiro lugar você vai notar a diferença do gosto, raramente aqueles que provaram um tomate “real” comprado de um produtor voltarão a comprar tomates que são encontrados no supermercado. Descobrir os verdadeiros sabores, falar diretamente com os produtores e ir visitá-los são maneiras de mudar hábitos.
Como influenciar o consumidor para que ele passe a aceitar produtos que não seguem os critérios estéticos vigentes?
Hoje estamos acostumados a comprar o que é “bonito”. Uma vez em casa, no entanto, percebemos que aqueles tomates tão perfeitos não têm gosto. Tudo que cresce naturalmente da terra tem defeitos, falhas, tamanho e cores como deveriam ser. A natureza dá a cada produto individual características especiais e únicas, em oposição ao que é criado em laboratórios ou em uma estufa com hormônios de crescimento.
No Eataly SP [parceiro do Slow Food], as frutas seguem, em absoluto, o padrão estético moderno. Parece-me um contra-senso com o que divulga o movimento
Devemos distinguir duas realidades: Eataly é uma cadeia de lojas ao redor do mundo que promove produtos genuinamente italianos, enquanto o Slow Food é uma organização que promove produtos locais de cada país.
No final do ano passado, ficaram públicos relatos de inadimplência no Eataly. Como o Slow Food se posiciona?
O Slow Food trabalha com Eataly exclusivamente na Itália no que respeita à escolha dos fabricantes e produtos para promover. Fora da Itália são duas realidades diferentes e com objetivos distintos.
A produção local de pequenos agricultores pode se relacionar com a ânsia capitalista?
Pequenos produtores precisam participar de mercados locais e criar acordos com os mercados maiores, se necessário, para que o público possa comprar. Não há nada de errado se um fabricante decidir comercializar seu produto nas maiores redes de varejo, desde que o produto não seja descaracterizado e os métodos de produção não sejam alterados diante de um forte aumento da procura. É o agricultor e o pecuarista que devem encontrar equilíbrio entre subsistência e manutenção de tradições.
A indústria alimentar vai contra a comida “boa, limpa e justa”?
Não é possível aplicar métodos de produção industrial na agrícola, a natureza deve ser interpretada e não vale um modelo universal. Precisamos entender o que “industrial” significa: é um discurso quantitativo. Não é para demonizar o modo de produção que pode ser definido como industrial, desde que não afete negativamente o ambiente e aqueles que produzem a matéria-prima (pagando direito), que não crie situações de transporte excessivos, que mantenha com nível de qualidade e tenha padrões de qualidade.
Não há vantagem alguma na industrialização desse setor?
Geralmente, falamos de “industrial” com uma visão negativa, porque fala-se de situações que, para garantir quantidade, prejudica-se o ambiente e a qualidade do que se produz. Se a indústria seguir nesta direção, com a necessidade de vender e ganhar mais, em algum momento, ela chegará a um limite em relação ao ambiente.
Por que a América Latina está nas prioridades do Slow Food?
A América Latina constitui o berço da biodiversidade e possui uma cultura alimentar com raízes profundas. Por outro lado, o ativismo da sociedade civil e dos movimentos sociais faz da América Latina um continente em contínua efervescência onde o movimento Slow Food encontra um terreno particularmente fértil.
O que é o acordo firmado entre o Slow Food e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, no Brasil?
O acordo traz, por um lado, a filosofia e a força da mensagem da acessibilidade a um alimento bom, limpo e justo para toda a sociedade, tendo a agricultura familiar como a força motriz desse movimento, e, por outro, um dos programas mais inclusivos, impactantes e geradores de valor para o campo e para as famílias ligadas diretamente à produção alimentar.
O que representa, na prática?
Ele permite o desenvolvimento de uma grande iniciativa conjunta, entre as universidades federais, lideradas pela UFSC, o movimento Slow Food e o MDA. Tal iniciativa permitirá a ampliação e qualificação da participação da agricultura familiar brasileira no movimento.
O Slow Food fala muito em recuperar as tradições dos campos, em revalorizar as técnicas antigas e, ao mesmo tempo, em uma “nova agricultura”. O novo é voltar ao velho, será?
Primeiro vamos esclarecer o fato de que as técnicas tradicionais e a “nova agricultura” muito frequentemente se encontram no mesmo nível, e não separados. A recuperação da tradição não deve ser percebida como técnicas antigas ou medievais. Ela também pode fazer uso de tecnologia moderna para ajudar na preservação. Podemos mencionar ciências modernas, como agroecologia, que hoje estudam o sistema e analisam o que os agricultores fizeram há muito tempo.
E no restaurante? O sr. diz que não se pode restringir a gastronomia à figura do cozinheiro. Como deve ser um bom cozinheiro do futuro?
Em um momento histórico em que o cozinheiro se tornou uma estrela, é importante que eles estejam na vanguarda da promoção do trabalho dos camponeses que são excluídos do boom gastronômico. Os cozinheiros devem afirmar enfaticamente que, sem essas pessoas, não pode haver alta cozinha. Só com uma aliança forte e sólida entre cozinheiros e produtores podemos dar um futuro à nossa alimentação.
O autor argentino de “El Hambre”, Martín Caparrós, diz que “a fome tem muitas causas” e que “a falta de comida não é uma delas”.
Não há dúvida de que em certas áreas do mundo os trágicos acontecimentos como guerras ou desastres naturais podem levar a uma falta de alimentos, mas estas situações são a minoria. O que é certo, como também atestam os documentos oficiais da FAO, é que a causa da fome é a pobreza, e não a falta de alimentos. Na maioria dos casos, as pessoas estão morrendo de fome porque não podem comprar comida. É um problema de acesso.
Mata-se a fome do mundo com as pequenas produções?
Certamente a pequena produção local pode ajudar muito o problema da fome. É por isso que Slow Food desenvolveu o projeto de “10.000 Hortas na África” e conseguiu criar até agora cerca de 2.093 hortas com escolas, vilarejos e periferias de cidades em mais de 35 países africanos. Uma horta tem várias funções: defende as sementes e a biodiversidade; com o plantio, envolve pessoas de todas as idades para valorizar os produtos locais e trabalhar em busca da suficiência e da soberania alimentar.
RAIO-X Carlo petrini, 66
Origem
Nasceu em 1949, em Bra, na Itália
Formação
Sociólogo e jornalista
Atuação
Fundou o movimento internacional Slow Food e a Universidade de Ciências Gastronômicas; em 2006, foi homenageado com o grau honorário em Letras Humanas, pela Universidade de New Hampshire (EUA)