Entrevista que concedi para a coluna Hashtag, de Mateus Camillo, da Folha de São Paulo.
MATEUS CAMILLO 27 FEVEREIRO 2023 | 6min de leitura
CONTRASTE A+ A-
A conexão perpétua nos condenou à disponibilidade eterna nas redes sociais. A necessidade de resposta imediata e a demora quando a resposta do outro lado não vem geram uma série de angústias nos seres hiperconectados. O resultado é uma sociedade estressada, mentalmente doente, sem tempo para nada.
A iniciativa Desacelera SP existe desde 2015 como uma “desaceleradora de pessoas e negócios”. Sua fundadora Michelle Prazeres passou a questionar a cultura da pressa após o nascimento de seu primeiro filho. “Nem todo mundo tem 24 horas iguais”, defende.
Desde então, ela já lançou uma série de iniciativas ligadas ao movimento slow, como o Guia Desacelera SP, com lugares para aproveitar São Paulo (SP) com calma, o Dia Sem Pressa, com atividades que estimulam a desaceleração, e a Escola do Tempo, em que forma lideranças para culturas de cuidado e promoção de qualidade de vida corporativa.
Prazeres questiona avanços tecnológicos, como o controle de velocidade de áudios de WhatsApp e de streamings. “Empresas de tecnologia geram necessidade. O acelerador de áudio é um exemplo. De escolha passa a ser hábito e de hábito, regra.”
A pandemia teve um grande papel ao naturalizar a cultura da atenção, segundo a pesquisadora. “Vivemos situações em que estávamos mediados pela tela, com nossa atenção muito dividida. Saímos da pandemia pior do que entramos, com dificuldade de fixação, apressados. É o que chamo de erosão da comunicação.”
Para sairmos dessa situação, o direito à desconexão torna-se fundamental. O #Hashtag conversou com Michelle Prazeres sobre o que podemos fazer para conseguir ter uma vida menos corrida.
Por que não conseguimos nos desconectar? Existe uma engrenagem que exige a gente conectado o tempo todo. Não interessa ao mundo do consumo o tempo que a gente não gasta consumindo. Pensar não dá dinheiro, dormir não dá dinheiro. As empresas de tecnologia conseguem monitorar até nosso período de sono. Estamos vivendo algo bastante sofisticado. É ainda mais difícil para a nova geração, que não sabe virar a chave, eles não sabem o que é desconexão, a ter direito a ficar alguns dias sem responder uma mensagem.
De quem é a culpa?O Vale do Silício convenceu a gente de que agilidade é bom, de que tecnologia é progresso. E toda vez que alguém tenta falar qualquer coisa mais ponderada é tachado de nostálgico, dinossáurico, “lá vem os chatos da tecnologia”. Eu estou olhando para os aspectos humanos disso. As pessoas estão adoecendo por causa da velocidade. Não é nostalgia, não é querer acabar com a cibercultura, com a tecnologia, mas a gente olha para a desumanização das relações, as pessoas estão exaustas, aceleradas, desinteressadas pelas outras. Há a expulsão do outro.
Como isso está comprometendo as relações sociais?Sem se interessar pelo outro, a gente não se conecta, não acha sentido comum. As trocas e os processos humanos ficam comprometidos. Esses dias eu estava numa entrevista e a pessoa do outro lado atualizava o feed. É a desumanização das relações sociais. Esse fenômeno tem a ver com o fato de as tecnologias estarem completamente imbricadas em nossa vida, de não existir mais o conceito de “entrar na internet”.
Como tornar as relações pessoais mais humanas e menos viciadas?Dá para construir alguns combinados. Se é um círculo de intimidade, estipule contratos de tempo de permanência no celular. Diga coisas como “olha, estou falando com você, pode terminar de responder o celular”. A pessoa fica constrangida e para. Se você está num ambiente de trabalho, proponha um pacto de concentração, de não usar o celular, de guardar num potinho. Diga que a reunião vai ser rápida, mas nesse tempo todo mundo tem que prestar atenção. Se perceber que alguém está usando, repita o “quando terminar eu continuo”. Também rola o constrangimento. Não podemos naturalizar essa divisão da atenção.
E o que é preciso para sairmos disso?A desconexão é uma das saídas para combater a exaustão extrema. As buscas desse livramento são individualizadas, nosso regime sociopolítico empurra a gente a acreditar que as soluções têm que ser individuais. Eu sei que o que serve para mim pode não servir para os outros. Tem casos que a urgência não é individual. A gente precisa de uma transformação cultural. Não dá para estar atrasado e falar que está preso no trânsito, sendo que a verdade era que estava levando o filho na escola.
Como você lida com a urgência no seu dia a dia?Eu estou atenta ao WhatsApp, mas tem horário que não respondo. Tenho a sensação de que quando você tem as rédeas, essa relação fica menos angustiada. Não é o caso do meu filho de 11 anos. Ele não tem maturidade para lidar. Quando ouve o celular apitar, ele quer pegar na hora, é uma angústia. Eu combinei com ele que tem horário específico para isso.
E o que cada um pode fazer?Tirar notificação, estabelecer horário, tomar medidas no âmbito do direito à desconexão. Não precisa ficar três dias ausente, mas ter pequenos momentos de desconexão que já dão um respiro. Eu percebo que os dias que estou mais ativa no WhatsApp por causa do trabalho ou dos filhos, fico mais ansiosa. Eu recomendo também o “não, pera, isso é necessário?”. Não aderir a uma tecnologia só porque é moda e todo mundo entrou. Usar a tecnologia de acordo com a necessidade. Não precisa responder na hora, estar sempre online.
Em termos de sociedade, o que pode ser feito?Eu acho que existe uma agenda de letramento digital, de leitura crítica da mídia, de alfabetização midiática por parte de governos, da Unesco, mas não consigo dizer um case concreto de um lugar que tenha uma relação saudável com a tecnologia. O Brasil faz uma sinalização de que haverá políticas públicas nesse sentido quando uma secretaria [Secretaria de Políticas Digitais, dentro da Secom] se propõe a pensar letramentos digitais e regulação das plataformas. Temos um longo e desafiador caminho pela frente. Temos gestos, sinais e gente construindo. Essas mudanças nunca são imediatas. Eu tenho esperança.
Você acredita que vamos atingir um equilíbrio?Existe uma pressão do mundo “bora, bora, bora” e alguns que dizem “pera, pera, pera”. É uma tensão de reflexividade. Talvez a gente viva uma exacerbação dessa força que puxa a velocidade, talvez a gente precise de uma tensão maior. Não sei se vai atingir o equilíbrio, quem está falando “não pera” é muito residual perto de quem fala “tenho que correr para pagar boleto”. Eu dei mentoria para muita gente que disse que passou a vida correndo e percebeu que chegou num momento sem sentido, que deixou de curtir, de conviver com família e amigos. E para quê?
RAIO-X
Michelle Prazeres
Jornalista, professora e gestora. Atua como consultora de bem-estar, saúde mental no trabalho e desenvolvimento profissional e organizacional. Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e Doutora em Educação (FE-USP). Possui pós-doutorado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, com estudo sobre as relações entre a comunicação, as tecnologias e a aceleração social do tempo.
É idealizadora do Desacelera SP e do Dia sem Pressa. É sócia da Ação Educativa e vice-presidente da Cidade Escola Aprendiz.