“As lentes que nos inspiram, a das manifestações tradicionais populares, nos lançam a viver outro tempo que não o tempo desenfreado da cidade. Claro que somos urbanos e este tempo também faz parte de nós; porém, existe uma conjunção de tempos que nos permeia, e assim aprendemos a transitar e interagir com nossas muitas possibilidades de ritmos”.
Roberta Larizza e Pedro Ribeiro contam a história do grupo Babado de Chita, criado em 2002, e explicam como a dança pode nos ajudar a encontrar uma relação mais harmoniosa com o tempo e o ritmo. “Apostamos que o tempo que a dança promove transpõe o cronológico, o rigor do ponteiro; ficamos na suspensão do que é ou não exato. Passado, presente e futuro ganham contorno de existência, daí tudo se encaixa e significa”.
Confira abaixo o depoimento de Roberta e Pedro.
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Série Desacelerad@s: Babado de Chita
Por Roberta Larizza
No ano de 2002, nos conhecemos todos, com exceção da Aline, que veio só um pouquinho depois, no Tendal da Lapa, em oficinas culturais oferecidas gratuitamente pela prefeitura de São Paulo.
Na época, o Pedro, meu marido, me inscreveu sem eu saber numa oficina de danças brasileiras e ele se inscreveu em uma de percussão. Foi ali que surgimos, fizemos um semestre de oficina e nos inscrevemos no próximo, fizemos tudo de novo. Andrea Soares, que integrou o grupo por sete anos, era a professora, e hoje não faz mais parte do Babado. Quando a segunda oficina acabou, falamos com ela que queríamos montar um grupo, pois não queríamos mais parar de dançar. Assim o fizemos, convidando alguns alunos da oficina de percussão.
Depois tivemos várias formações, a maior com 19 pessoas!!! Estreamos no dia 21 de setembro de 2002, em um festival de dança no Colégio Vera Cruz. Tudo era muito rudimentar e nos apresentávamos com som de CD, ainda. Aos poucos, desaceleradamente, fomos incluindo a música ao vivo, pesquisas e composições próprias.
Hoje, temos um repertório de alguns espetáculos ativos e outros que fazem parte da nossa história. E, como na cultura tradicional, as linguagens da dança, da música e da performance cênica estão presentes em todos os espetáculos. É impossível separá-las.
Desacelera SP: Como dançar pode ajudar a repensar nosso tempo e nosso ritmo?
Babado de Chita: Partindo da ideia base de que dançar é existir, existimos, como grupo, em função da dança e do que vem junto com ela: a música, os sentimentos, as sensações, o encontro com a gente e com o outro.
Quando nos deslocamos pelo espaço em nossos treinamento ou em apresentações, vivemos isso como nosso estado de dança e existência. Às vezes nossa dança é dura, às vezes áspera, ou engraçada, malemolente, silenciosa, cansada, palhacesca, investigativa, serena, lúcida, leve, abusada, fixa, maternal, paternal ou tudo isso e muito mais misturado.
Nos conduzimos a interagir com o presente, com o baque do tambor, com o ritmo, com nossas memórias individuais ou das manifestações populares nas quais nos inspiramos e, assim, nosso tempo é totalmente influenciável por esses vieses.
Reconhecermos o ritmo individual e partilhá-lo no coletivo é o desafio. Em nossas apresentações, provocamos o público a sair da zona de conforto da “simples” apreciação e a sentir-se através do corpo, com vergonha ou com despojamento, com alegria, com a emoção que vier, mesmo que a pessoa não venha dançar, foi provocada de alguma forma por aquele convite e já saiu do automático. É muito divertido e interessante ver as reações da surpresa.
Apostamos que o tempo que a dança promove transpõe o cronológico, o rigor do ponteiro; ficamos na suspensão do que é ou não exato. Passado, presente e futuro ganham contorno de existência, daí tudo se encaixa e significa.
Sendo assim, dançar passa a ser um fundamento. Ou dançamos ou não vivemos e existimos.
E levamos isso para a nossa vida cotidiana, para os nossos outros trabalhos … sim, todos temos outros trabalhos, educadorxs, arte-educadorxs, psicóloga, pesquisadora … mas a prática de levar a vida para as sensações e percepções físicas nos acompanha, não tem mais como fugir.
E agora, a segunda geração do grupo está com a gente aprendendo como se aprende nas comunidades e como aprendemos a aprender no Babado, observando, um aprendizado informal, despretensioso, por isso consistente, e as crianças vão se manifestando como e quando querem.
É lindo viver isso.
O grupo se propõe a pensar o tempo e o ritmo em suas atividades?
Sim. Tempo e ritmo nos conduzem, nos inspiram e nos ampliam. Dilatamos as possibilidades sem a busca do que há de certo ou errado e sim o que há de validade comum e coletiva, com ou não combinado prévio.
Quando tiramos os calçados, deitamos no chão, nos deixamos ser conduzidos pelo ritmo dos tambores, pelas canções ou, numa situação de prática com o público, pedimos para os outros fazerem isso, o recorte no tempo acontece, nos sentimos de outro jeito, temos a possibilidade de parar e sentir tudo aquilo que estamos sentindo, seja bom ou não, mas que sempre se transforma a partir do ENCONTRO.
Vibrar, pulsar e perceber a frequência que produzimos, nos ajuda a criar.
Criar outros espaços e também tempos. Nossos portais e lentes de ver e viver mundo.
As lentes que nos inspiram, a das manifestações tradicionais populares, nos lançam a viver outro tempo que não o tempo desenfreado da cidade, claro que somos urbanos e este tempo também faz parte de nós, porém, os tempos da merendeira escolar que também é cantora, do cortador de cana, que é mestre de cavalo marinho, do pedreiro, que é compositor de coco de roda, essa conjunção de tempos nos permeia, aprendemos a transitar e interagir com nossas muitas possibilidades de ritmos. Uma bênção, somos gratos por todo o aprendizado com esses mestres populares, que transpõem as rudezas da vida e perpetuam tantas belezas.
Como o tempo e os ritmos são percebidos e trabalhados por vocês?
Percebemos individualmente e depois procuramos a unidade comum, dançando juntos, enlaçados ou não.
Pisar, marcar, pulsar, cantar e até resmungar o tempo interno na fusão do externo que vem no baque/batida dos tambores, nos ajuda a situar uma busca comum, que muitas vezes chamamos ou reconhecemos como coreografia-base: o desenho no espaço que vem do “coração” pulsado no momento e instante, que poderá reaparecer, porém nunca igual.
O tempo de dançar não se repete, só existe.
Babado de Chita
ALINE DAMÁSIO
FERNANDO MACHADO
HAYDÉE KATZMAN
MAÍRA ADISSI
MARIA PIMENTEL
PEDRO RIBEIRO
ROBERTA LARIZZA