Leia o artigo de Mi Prazeres e Carol Messias publicado na Revista Coaching Brasil, relatando o percurso de pesquisa no Projeto Humanizar a Comunicação.

 

“[Comunicar] trata-se de fazer o outro chegar perto da emoção e da força do vivido.” Ciro Marcondes Filho (2019, p. 26)

Quando observamos a circulação do termo “comunicação” acompanhado de adjetivos que reforçam suas qualidades subjacentes, entendemos que pode haver uma ponta de denúncia e outra de reivindicação. Denúncia de uma comunicação mecânica, automática e funcionalista que, adotada em excesso e sem reflexão, a instrumentaliza e embarga suas qualidades relacionais e humanas. Reivindicação, pois especialmente neste momento em que nos comunicamos nos mundos físico e digital, com inteligências artificiais e tecnologias pautando ou sendo veículos da parte de nossas ações comunicativas, é importante não perder de vista a serviço de quê e de quem está a comunicação.

A comunicação autêntica, como expressão, está presente em diversos estudos de: Educação e Linguística (desde a década de 1970), em análises de métodos de ensino que discutem questões em torno da “naturalidade” e do “artificialismo” dos materiais e exemplos usados em sala de aula; Psicologia com foco em relações familiares; e a partir dos anos 2000 no estudo de gestão organizacional com abordagem relacional. O sociólogo francês Philippe Zarifian conceitua o termo “comunicação autêntica” como “um processo pelo qual se instaura uma compreensão recíproca e se forma um sentido compartilhado, resultando em um entendimento sobre as ações que os sujeitos envolvidos são levados a assumir juntos ou de maneira convergente” (Zarifian, 2009, p. 165). Já no contexto brasileiro, desde 2015, a comunicação autêntica passa a se conectar com o conceito e a abordagem da Comunicação Não Violenta (CNV), com a difusão do trabalho da coach e mediadora Carolina Nalon.

Entendemos este chamado à autenticidade como um pedido de inclusão (resgate) da nossa subjetividade na comunicação e, portanto, de nossa humanidade em sua complexidade no modo como interagimos conosco, com as pessoas e com a sociedade.

Partilhar e transferir são os dois caminhos de sentido que a comunicação vem trilhando de sua origem latina communicare, os quais se bifurcam em abordagens m ais dialógicas e relacionais e outras mais informacionais e instrumentalizadas (Lelo, 2016). Será que é possível chegar a um ponto de encontro entre essas acepções etimologicamente divergentes? As expressões “comunicação autêntica” e “comunicação humanizada” nos sugere que sim.

Quando verdade, legitimidade e humanidade são convocadas nessas expressões, é porque a comunicação perdeu seu rumo em algum lugar dessa história. E temos algumas pistas hoje de onde ela ainda se perde: nas fake news, na exigência de produção e transmissão de conteúdo acelerada, nas relações tóxicas, abusivas pessoais e profissionais que usam comunicação como veículo de controle e punição, no nó na garganta que tantas vezes carregamos e não encontramos meios de desatar.

Trilhando o caminho da comunicação como diálogo, entendemos a comunicação como uma prática essencialmente humana. Então, faz sentido usar um pleonasmo como “humanização da comunicação” ou “comunicação humanizada”? Em 2019, começamos um percurso de pesquisa para responder a essa inquietação. Nossa intuição dizia que sim; fazia sentido pensarmos em modos de humanizar um processo que é fundamentalmente humano, mas que vem sendo campo de atravessamentos em função do contexto pós Web 2.0 e Quarta Revolução Industrial. Nesse contexto, relembramos a especificidade da comunicação no sentido que aponta Muniz Sodré:

Assim como a biologia descreve vasos comunicantes ou a arquitetura prevê espaços comunicantes, os seres humanos são comunicantes, não porque falam (atributo consequente ao sistema linguístico), mas porque relacionam ou organizam mediações simbólicas – de modo consciente ou inconsciente – em função de um comum a ser partilhado. (Sodré, 2014, p. 11).

Entendemos a comunicação enquanto práxis (ação-reflexão) que acontece no – e a partir do – encontro com o Outro. E que, por isso, realiza-se em uma determinada temporalidade, partindo de uma intenção e atravessando uma espacialidade até que se torne realidade. Comunicar é, sobretudo, a busca pelo vínculo, pela ponte, pelo sentido e pela ressonância. Como investigar um campo aparentemente tão subjetivo?

O pesquisador Ciro Marcondes Filho (2009) diz que a pesquisa em Comunicação é a investigação do ininvestigável, porque jamais se saberá o que é comunicado. Ela seria, portanto, avaliável apenas pelos seus rastros:

O ideal de um estudo comunicacional é aproximar, na medida do possível, o relato sobre o fenômeno vivido, o discurso linguístico, da vivência propriamente dita do acontecimento. (Marcondes Filho, 2009, p. 25).

Os objetos da comunicação, então, seriam o acontecimento (imanente, inerente) e os efeitos do acontecimento (transcendente). Só seria possível saber a comunicação do no movimento. E, nesse sentido, o verdadeiro não se limita ao verificável e acompanha os contextos.

Orientadas por esse entendimento, demos início à nossa investigação no campo da prática, partindo da hipótese de que o termo “humanização” poderia dizer respeito a algo que pode acontecer no processo, no uso (instrumental, ferramental, tecnológico) e/ou nos efeitos (ou rastros) da comunicação na contemporaneidade.

Para conduzir a nossa pesquisa observante e reflexiva, nosso primeiro movimento foi convergir nossas pesquisas individuais, sobre comunicação slow e comunicação autoral, em um olhar conjunto: compartilhando referências, discutindo abordagens e dialogando sobre modos de olhar e praticar a comunicação. Nosso objetivo era oferecer um olhar crítico e uma síntese de referências para as pessoas que buscam apoio teórico e prático para tratar da comunicação enquanto processo vivo, que tece as relações (e transformações) entre seres e cultura.

Entendemos que para investigar a comunicação com essa qualidade era preciso sair do diálogo entre duas e com as nossas fontes de pesquisa e partir para a observação do campo, dos modos de pensar, fazer e usar comunicação hoje. Entre junho de 2020 até abril de 2021, conduzimos um processo de escuta a partir de uma curadoria cuidadosa de vozes, informações e conhecimentos em torno de abordagens, componentes e elementos da comunicação em sua dimensão tocante ao humano. Hoje, temos mais de 770 minutos de material gravado em áudio e vídeo e nove relatos de entrevista registrados por escrito no site da iniciativa DesaceleraSP. Compartilhamos aqui alguns dos nossos achados dessa investigação ainda em andamento.

Buscamos ouvir abordagens, atributos e práticas dedicadas a um modo de comunicar brasileiro. Temos observado a riqueza desse mosaico vivo que é a comunicação em sua dimensão humana nas seguintes temáticas: a comunicação como diálogo (educação), a organicidade da comunicação, a comunicação assertiva e não violenta, a comunicação face a face no ambiente organizacional, a comunicação como ponte entre culturas (tradução/interpretação), a comunicação com consciência e artesanal, a contação de histórias como comunicação (fora dos contornos do storytelling), a comunicação jornalística e a diversidade, a  decolonialidade da comunicação, a comunicação multissensorial, a comunicação inscrita no tempo e a comunicação delicada.

Ao classificar os nossos registros, algumas palavras relacionadas ao universo de comunicação praticado pelas/os nossas/as entrevistadas/os dão outras pistas sobre os componentes da humanização da comunicação: ambientação, ambiente, amorosidade, visualidades, delicadeza, autoria, (de)colonialismos, face a face, multissensorialidade, slow, consciência, contexto, cuidado, design, diálogo, essência, fenomenologia, intenção, interpretação, memória, orgânico, escuta, espiritualidades, ponte, propósito, sentido, tecnologias, tempo, verdade e vínculo.

Nossa intenção não é chegar a um “checklist da comunicação humanizada”, nem propor um modelo nesse sentido. Queremos reforçar e dar a ver modos de comunicar e pensar a comunicação por brasileiras/os do nosso tempo, que refletem e atuam na resistência a uma comunicação massificada, padronizada, mecânica e pautada por contornos de uma sociedade acelerada, indexada pelas engrenagens tecnológicas e por um mercado que conduz a uma homogeneização e impõe modos de comunicar muitas vezes desumanos, associado a um contexto produtivista, transformando matéria de vínculo em mercadoria.

Até aqui, entendemos que buscamos um reencantamento da comunicação e que chegamos a um território reflexivo que se constituiu a partir da colheita que realizamos no processo de pesquisa e escuta, dando vida a alguns componentes que pensamos serem fundamentais para pensar a humanização da comunicação.

A tarefa que se apresenta na atual fase da pesquisa é a de organizar esses achados. Provavelmente, não chegaremos (nem queremos chegar!) a uma (nova ou renovada) definição de comunicação. Acreditamos que a pesquisa na arena das práticas comunicativas com essa qualidade humana possa apoiar a construção de ambientes de comunicação ancorados nas pessoas, amparados em confiança, com intenção de vínculo e de construção de diálogo. Esses ambientes comunicacionais humanos podem acontecer em empresas, organizações, salas de aula, grupos, famílias ou qualquer outro espaço composto por indivíduos que apostam na comunicação como prática organizadora do comum. Queremos, portanto, seguir compartilhando o terreno reflexivo fértil que encontramos, capaz de fazer germinar outras abordagens a partir dos aprendizados do percurso e das nossas inspirações e referências, a fim de sustentar a reivindicação de qualidades humanas para comunicação, como autenticidade e autoralidade, na prática e no tempo.

 

Referências bibliográficas

LELO, Thales Vilela. Faces do comum na comunicação: da partilha à disjunção. Galáxia (São Paulo). n.31 São Paulo Jan./Apr. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-25542016122028. Acesso em 21 abr. 21.

MARCONDES FILHO, Ciro. Nova teoria da comunicação, v. 1: o rosto e a máquina: o fenômeno da comunicação visto dos ângulos humano, medial e tecnológico. São Paulo: Paulus, 2013.

MARCONDES FILHO, C. A Questão da Comunicação. PAULUS: Revista de Comunicação da FAPCOM, [S. l.], v. 3, n. 5, p. 17–26, 2019. DOI: 10.31657/rcp.v3i5.87. Disponível em: https://fapcom.edu.br/revista/index.php/revista-paulus/article/view/87. Acesso em: 23 abr. 2021.

SODRÉ, Muniz. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

ZARIFIAN, Philippe. Comunicação e subjetividade nas organizações. In: DAVEL, Eduardo; VERGARA, Sylvia Constant. Gestão com pessoas e subjetividade. São Paulo: Atlas, 2009.

Compartilhamos aqui neste post algumas referências da nossa pesquisa sobre comunicação, aceleração, autoria e humanização. 

 

ACOSTA, Alberto. O bem-viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Ed. Elefante. 2016
O Bem viver é um conceito aberto, de origem latino-americana, que se apresenta como contribuição genuína ao debate da esquerda mundial do século 21. É um olhar que se alinha ao do decrescimento enquanto resistência aos paradigmas pós-desenvolvimentistas.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Série de conferências do escritor italiano (que não chegaram a ser proferidas) sobre qualidades que a literatura é capaz de salvar e que ele apontou para serem conservadas neste milênio que vivemos: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. 

CONTRERA, Malena Segura. Vínculo Comunicativo. In: MARCONDES FILHO, C. J. R. (Org.) Dicionário de comunicação. São Paulo: Paulus, 2014.
Contrera, afirma que “podemos considerar a contribuição do estudo dos vínculos comunicativos para um alargamento da compreensão sobre os meios de comunicação, entendendo-os como espaços (físicos ou simbólicos) nos quais essa rede de vinculação deve operar numa escala socialmente maior do que a da comunicação interpessoal, e refletindo sobre se esses meios têm ou não, de fato, desempenhado esse papel, ou se se tornaram meros espaços funcionais por onde transitam informações assépticas e vazias de sentido, apenas quantitativa e mercadologicamente consideradas”.

ÉCHEVERRIA, Rafael. Ontologia del Languaje. Santiago: J. C. Sáez Editor, 2003.
O autor articula contribuições sobre a linguagem de Nietzsche, Wittgenstein, Heidegger, Maturana, entre outros, para propor uma nova interpretação da linguagem como fenômeno humano. Neste livro, o teórico traz as bases filosóficas que embasam a ontologia da linguagem e aborda temas como: atos linguísticos, julgamentos, escuta, ação e linguagem, conversações, emoções e poder. 

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
Para Freire, o diálogo é “uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação”.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Editora Vozes. 2015
O autor problematiza a sociedade do cansaço, que se transmuta na realidade como “sociedade de desempenho” e “sociedade do trabalho”. Para Byung-Chul Han, somos chefes de nós mesmos e esta é uma forma de coerção mais eficiente do que a sociedade do controle. Ele aponta que perdemos a capacidade de dedicar atenção ampla e contemplativa às tarefas, pois somos “animais laborais”, impossibilitados do recolhimento contemplativo. A absolutização do trabalho, para o autor, é uma das grandes engrenagens da sociedade do cansaço: uma sociedade hiperativa que, na verdade, é hiperpassiva, porque não se permite mais pensar; e o pensamento seria a mais ativa atividade. Ele afirma a necessidade do tempo intermediário, sem trabalho; e de resgatar a celebração, a festa, o belo e o divino no cotidiano e na política.

HONORÉ, Carl. Devagar. Editora Record. 2005
Considerado a “bíblia” do Movimento Slow, o livro do jornalista escocês problematiza a velocidade como regra e apresenta a ideia de “tempo giusto”. Devagar não é ser lento, mas dedicar às coisas o tempo que elas precisam. Os capítulos do livro trazem “aplicações” do conceito de slow nas cidades, na medicina, na criação de filhos e na alimentação.

MARCONDES FILHO, Ciro. Nova teoria da comunicação, v. 1: o rosto e a máquina: o fenômeno da comunicação visto dos ângulos humano, medial e tecnológico. São Paulo: Paulus, 2013. Coleção comunicação. Comunicação não tem nada a ver com transmissão, transferência, transporte, trânsito, repasse ou similares, pois todas essas definições supõem a ideia de que algo vai de uma pessoa a outra (…) Não existe esta materialidade, porque o que sai de mim, como fala, expressão, obra, música, toque, chega ao outro como coisa diversa, que eu jamais poderei saber o que é”. A comunicação é isso e apenas isso: a capacidade de romper a redoma de nós mesmos, o círculo fechado de nossa autossuficiência, e buscar o outro, reconhecer sua alteridade, sua especificidade, sua diferença em relação a mim, sua estranheza. O diálogo é  a primeira forma de comunicação humana. O termo significa “palavra que atravessa”, que liga as pessoas envolvidas numa conversação. É um fio, uma instância invisível, mera sensação, um fluxo de energias que circunda duas ou mais pessoas. Para ter efeito, é preciso que no instante preciso do seu acontecimento haja imersão total dos agentes na relação. O diálogo (…) é aquilo que dá condições à comunicabilidade, algo que ocorre entre as pessoas, é o tecido comum da interação. 

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
O autor traz sua perspectiva da Biologia do Conhecimento e da Biologia Cultural para refletir sobre a educação, as emocionalidades, a ética do atuar humano e as relações sociais. Seus questionamentos sobre e a partir da situação do Chile no final da década de 1980 são importantes para cuidarmos da construção de relações humanas democráticas.

MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

Coletânea de artigos do pensador chileno, organizada por Cristina Magro, Miriam Graciano e Nelson Vaz, que traz o alicerce da Biologia Cultural e conceitos que fundamentam sua visão da fenomenologia do ser humano. Fala do amor como emoção que sustenta a vida humana, bem como suas relações, linguagem e fenômenos sociais e culturais.

PINO, Claudia Amigo; ZULAR, Roberto. Escrever sobre escrever – uma introdução crítica à crítica genética. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Um livro sobre literatura e de crítica literária na perspectiva da crítica genética, uma abordagem dedicada a processos criativos de escritores, sobretudo debruçando-se sobre análise de seus manuscritos. Traz questionamentos e desdobramentos teóricos sobre práticas e espaços de escrita, sobre a função-autor, entre outras.

REVISTA Criação e Crítica n. 12 – Eu voltei! – o autor depois de morte ou novas formas de estudar a autoria. São Paulo, jun. 2014. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/criacaoecritica>
Revista acadêmica de literatura e crítica literária traz edição temática com artigos de pesquisadores sobre a questão da autoria.

ROSA, Hartmut. Alienação e aceleração: esboço de uma teoria da temporalidade moderna
tardia. Alienation and Acceleration. Towards a Critical Theory of Late­Modern
Temporality. Malmö/Arhus: NSU Press, 2010. Título ainda sem tradução
oficial para o português.
O autor parte da definição do que seria uma vida plena para pensar os vetores de aceleração da sociedade atual. A aceleração é técnica; é do ritmo de vida; e das mudanças sociais; e reverbera no espaço, nas relações sociais e no mundo material. Rosa explora os motores de desaceleração que podem “frear” estas engrenagens.

ROMANO, Vincente. Ecología de la comunicación. Hondarribia: Argitaletxe
Hiru, 1998
Voltada para o campo da comunicação, a obra analisa a crise sistêmica e a ecologia como uma atitude cognitiva e prática necessária para recobrarmos o corpo como mídia primária, na perspectiva da convivência. O corpo está colonizado pelas mídias e tecnologias e é preciso descolonizá-lo. Nesse sentido, pensa-se nas noções de ecotempo e biotempo.

SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
Nesta obra, o autor se questiona sobre a possibilidade de existência de uma potência emancipatória na dimensão do sensível, do afetivo ou da desmedida para além dos “cânones limitativos da razão instrumental”. Ele resgata a dimensão do sentir para o comunicar, afirmando a urgência de uma outra posição interpretativa para a comunicação.    

WOLTON, Dominique. Informar não é comunicar. Porto Alegre: Sulinas, 2011.
Wolton aponta que vivemos em um excesso de expressividade, mas não de comunicação. “A velocidade da informação, muitas vezes, impede o aprofundamento, tendo como consequência a simplificação, o excesso de clichês e de estereótipos”. Para o autor, a pressa – em detrimento da compreensão de acontecimentos cada vez mais complexos – faz com que haja cada vez mais informação, mas uma informação que circula sem checagem e apuração. Para Wolton “a velocidade da informação pode se tornar uma arma fatal na medida em que o entendimento do outro necessita de tempo e lentidão a fim de superar os estereótipos múltiplos e construir um mínimo de convivência cultural”.

Laura Corrêa é artista visual, designer e desenhista de processos. Ela se encontra nas artes que têm no tempo um parceiro e se inspira na natureza, seu “grande livro”. Laura é criadora do Estúdio bem te vi. Entrevistamos a Laura no dia 23 de Julho,  quinta-feira, pela manhã. A entrevista aconteceu remotamente, pela plataforma ZOOM.

Artista multifacetada, Laura buscou em processos de autoconhecimento a resposta para uma pergunta que se apresentou depois de dez anos de trabalho bem sucedido em um emprego de sucesso, mas sem sentido. “Onde eu posso colocar o desenho no mundo?” foi a questão que a moveu a romper com um campo onde ela fincou raízes por meio do design gráfico. Designer de formação, ela trabalhou em agências de comunicação e – um dia – se viu e crise com o que significava fazer o que fazia. “Eu colocava desenho e imagem em qualquer coisa. Via a imagem que eu produzi e isso me trazia dilemas filosóficos, conceituais, éticos, políticos”.   

Hoje. ela visualiza a possibilidade de agir com quem ela é em muitas áreas. “Observo processos e extraio deles expressões visuais”. Para ela, a arte extrapola o universo artístico como a sociedade concebe no senso comum. “A arte é uma habilidade de pensamento”.

Consciente desta potência, ela a ativou para fundar uma escola, desenvolver projetos sociais e culturais e se engajar em ativismos. “Fui aos poucos me sentindo confortável para atuar em diferentes campos a partir do olhar artístico”. 

Com a pergunta que a moveu a romper com o trabalho repetitivo das agências, Laura foi estudar e buscar pessoas que ajudassem ela a trazer elementos para esta busca. Desta jornada, nasceu um projeto de buscar as raízes da visualidade do brasileiro. “Em todos os meus encontros, sempre me vi como brasileira. Mas o que é isso? O que quer dizer? Comunicar é ir ao encontro; é buscar o que de essencial existe nas partes envolvidas na comunicação, para que a comunicação flua”.

A pesquisa deste projeto trouxe clareza visual para outros projetos, inclusive para a criação de seu próprio estúdio.

Comunicação que vem de dentro

“Humano é isso. É a comunicação que vem de dentro. Não posso incutir uma imagem que  vive em mim em uma coisa que o outro quer comunicar”. Laura nunca compreendeu as “tendências” de comunicação ou as cores consideradas “pantone do ano”. “A comunicação só acontece se encontrar um caminho de fluxo de dentro para fora”. 

Diante desta constatação, uma questão se impõe: “como serei autoral com minha expressão visual, sem ser A autora do processo?”.

Laura costuma convidar as pessoas que a contratam para um processo de co-criação, “O primeiro passo é um mergulho para dentro”. Nesse sentido, ainda que ela reconheça o suposto paradoxo da expressão “humanizar a comunicação”, ela o vê como necessário. “Ao afirmar que é preciso humanizar, acordamos algo em um mundo que começou a se desumanizar, se boicotar, acelerar e pular etapas. Quando acreditamos que as coisas podem ser iguais envolvendo entes diferentes, é porque estamos nos maquinizando”.

Praticar a humanização da comunicação trouxe o prazer de volta para Laura. “Antes, era um processo repetitivo. Conhecer as pessoas para comunicar processos é uma riqueza! É uma maravilha!”. Para fazer isso, ela criou uma espécie de “caminho” para seus clientes. Chamado de “fios do tempo”, o processo consiste na realização de encontros prévios ao processo criativo. “É esta troca que faz com que as pessoas se enxerguem no campo do que não é cognicível, é intangível”. Isso gera um encantamento que conecta com outro pensamento”.

Revelar-se no tempo

Laura tem uma paixão especial pelas artes que têm no tempo um parceiro. “A fotografia sempre foi minha companheira. Senti isso na alma na primeira vez que entrei em uma sala escura. E consegui atribuir sentido depois de algum tempo. A ideia de algo que se revela no tempo e que opera em luz e sombra, para mim, é uma metáfora da vida, do que eu busco na vida”. “Gosto de todas as artes que tem um processo no tempo para se revelar. Adoto gravura, que se imprime no reverso. Isso é a vida!”.

Tempo e natureza possuem uma conexão íntima para Laura. “A natureza é minha grande inspiração. Meu grande livro. E foi muito marcante para mim o momento da vida em que parei, tirei um tempo para mim e para minha família e tive tempo para olhar e observar a natureza com outra atividade, com outra disposição. Com tempo. pude observar a natureza do lugar que sempre busquei e nunca havia conseguido, que me permitiu captar a expressão do que vem de dentro”. Foi neste momento que ela realizou que a superfície é apenas uma destas expressões. “Como consigo, pela expressão externa, mostrar o interno?”: esta pergunta se apresentou e passou a movê-la. “Esta é a poética do verso e do reverso que mencionei com a gravura”.    

A beleza do artístico, para ela, reside nesta busca, mas que não contém todas as respostas, nem tampouco pode ser reproduzida como uma fórmula. “A beleza é o descontrole do que o Outro vai entender e sentir”. Ela conta que precisou de um processo de alargamento para conseguir se soltar na relação com este não controlar. “Trata-se de um entre, mais fluido, onde a comunicação acontece”. Nesta dança, a liberdade da comunicação artística trouxe importantes insights para processos de comunicação conectados ao universo do design, em que muitas vezes é preciso atender a metas e objetivos. “Nunca vamos controlar. Precisamos buscar apenas uma âncora, algo que finque a comunicação”. Para isso, é preciso buscar a verdade do que se comunica.

“O que importa é que seja a verdade daquela pessoa, projeto ou organização e que eu consiga fazer esta verdade sair por meio da expressão visual”. Não se trata de um método. Não dá para sistematizar. “Justamente por se tratar de uma prática que se estabelece no vivo. As coisas vivas estão em transformação e pedem que se estabeleçam vínculos”.

Existem dicas práticas para se comunicar assim?

Não se trata de um método e não é possível estabelecer um “passo a passo” para a comunicação viva, autoral, humanizada, com sentido e a partir do vínculo e da verdade. Laura conta que é possível desenvolver uma “postura” ou atitude nesse sentido, ainda que não se possa chegar a um lugar “final”, onde a comunicação estaria “pronta” ou “estabelecida”. O senso de humanidade do processo está justamente na compreensão de que ele está vivo, em movimento, em transformação e se dá a partir de cada relação.  “É preciso estar sempre aberto para deixar que o Outro entre e para criar um campo para que o Outro permita que você entre”. 

E não existe uma forma de criar nada com outras pessoas sem que haja encontro. “Cada um vai exercitar as possíveis formas de criar esse encontro”. 

Estar aberto significa não se formatar. “Não dá para criar uma fôrma para as coisas. Esta compreensão é a minha principal dica”. 

Outra dica é a de que nós – comunicadores(as) – somos veículos. “Nós ajudamos a trazer expressão do que o outro quer manifestar no mundo. Temos algumas habilidades e recursos para isso”.

Por fim, devemos convidar o outro a ser criador da sua própria voz. “Temos que sair do lugar do ego, da comunicação dos prêmios, da competição, da vaidade. Estar acordado para isso é um exercício. E não devemos parar nunca de praticar e ver pela experiência do caminho”.

Laura compartilhou com a gente reflexões de Michelangelo que a acompanham desde que ela entrou em contato com a obra, quando viveu na Itália para estudar. 

“Em cada bloco de mármore vejo uma estátua; vejo-a tão claramente como se estivesse na minha frente, moldada e perfeita na pose e no efeito. Tenho apenas de desbastar as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus já a vêem.”

“Observei o anjo gravado no mármore, até que eu o libertasse.”

As frases, da obra “Os Escravos” nos convidam a pensar sobre o papel de uma comunicação que tem seu sentido no desvelamento de algo que (já) está ali e que precisa florescer.  

      

Como citar: CORRÊA, Laura. Laura Corrêa: a autoria e os fios do tempo. [Entrevista concedida a] Carolina Messias e Michelle Prazeres. Projeto Humanizar a Comunicação. São Paulo, DesaceleraSP, 24 jul. 20. s. p.