Leia a íntegra do artigo originalmente publicado na edição de 6 de janeiro de 2023 no jornal Folha de São Paulo.
Um ano humanoMichelle PrazeresNa minha rede de relações, o desejo mais comum para 2023 foi esse. “Que seja leve”, “que seja brando”, “que seja suave”, manifestaram meus amigos e pessoas mais queridas em mensagens no 31 de dezembro. No dia 1o de janeiro, o clima já era outro. Sopraram ventos de esperança e os desejos já estavam mais conectados a uma espécie de convicção de que este ano será mesmo diferente. Oxalá!
Não podemos esquecer de 2022. E – justamente por isso – temos o compromisso de fazer de 2023 um ano humano.Atravessamos – especialmente nós, brasileiros – um período de dores coletivas tão severas, que reverberaram na nossa saúde mental. Estamos exaustos, mais ansiosos, mais deprimidos, mais estressados e sofrendo mais burnout.
2022 foi pesado. Anunciou-se uma “volta”, sem saber exatamente para o que se voltava. Nossa doença de velocidade se agravou neste período. Retomamos dinâmicas de trabalho e convívio social, ignorando que passamos por dois anos de isolamento, por centenas de milhares de perdas e lidando com a angústia diante de um governo anti democrático e desumano.
A esperança depositada em 2023 não é vã. Temos uma radical transformação no comando país, que deve reverberar para as vidas de cada um de nós.Mas o suave, o brando e o leve não virão se não sairmos do automático.
Precisamos nos empenhar em tarefas de humanização. Precisamos – urgentemente – desacelerar.Desacelerar não é ser mais devagar. É recobrar nossos sentidos, nos reconhecer como pessoas. É se perguntar quando a velocidade faz sentido e quando não faz, mas estamos correndo apenas porque estamos no automático. E não se trata apenas de um automático individual. Mas – sobretudo – de um automatismo coletivo.
Precisamos entender que a cultura da velocidade a que estamos submetidos é também a cultura do desenvolvimento desenfreado, do crescimento a qualquer custo, do consumo exacerbado, do trabalho produtivista, do multitarefa, do avanço tecnológico irresponsável (que se diz inevitável), do excesso (des)informativo e de uma relação insustentável com a natureza e com o planeta.
Todos estes motores estão conectados e nos conduzem a um suposto progresso em um movimento frenético de paralisia (ou frenesi em suspensão), como sugere o alemão Hartmut Rosa. Estamos em um permanente movimento sem sentido. E isso nos dá uma sensação de esgotamento coletivo e individual.
O sociólogo e crítico literário Antonio Candido afirma que a luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo. Por isso o desacelerar não é uma opção individual, mas uma saída coletiva. E ela não se apresentará espontaneamente, em um mundo no piloto automático.
A sociedade do cansaço (assim nomeada por Byung-Chul Han) e o regime 24/7 produzem ambientes desumanos e pessoas encapsuladas sem condições de sair do automatismo. Precisamos desacelerar e encontrar o que resgate philia, comum, sentido de pertença, convivências e comunidades. Isso é politizar a agenda do cuidado e da desaceleração, questionando a concepção eurocêntrica de bem estar e conectando-a à alternativa sistêmica do bem viver.
Existem caminhos sistêmicos para assumir nosso acordo com o suave, o leve e o brando que desejamos nas mensagens de fim de ano. Eles passam por um pacto com o decrescimento, a boniteza, a amorosidade e as comunidades que encontra ressonância em um projeto de país em reconstrução.
Michelle Prazeres é jornalista, educadora e idealizadora do DesaceleraSP e da Escola do Tempo.