Outro dia, comecei a minha aula na disciplina que ministro no Mestrado da Cásper com uma atividade de sensibilização sobre tempo e ritmo de vida. A intenção era ativar nos(as/es) alunos(as/es) uma disposição ressonante para a aula sobre aceleração social do tempo, noção que seria tema daquela aula.
Convidei a turma a fazer uma prática de alocação temporal: um exercício de distribuir “cotas de tempo” pelos vários “campos da vida”. Depois de fazerem a atividade, convido os(as/es) alunos(as/es) para conversar sobre o que sentiram e pensaram ao realizar a proposta.
Uma primeira constatação interessante é a de que costumamos (ou nos sentimos mais confortáveis em falar disso publicamente) dedicar mais tempo para questões “do mundo lá fora” do que para necessidades internas ou pessoais (como desenvolvimento intelectual ou família).
Outra ideia comum é um certo desconforto íntimo com a sensação de que é mais socialmente aceitável ser superocupado do que ser super disponível. Por que desvalorizamos a disponibilidade? Que mundo é este que inverteu tanto o sentido das coisas? Por que parece bacana falar que não temos tempo para as coisas?
Este exercício costuma ser interessante, porque, justamente, nos provoca – com uma técnica de visualização – a ver, perceber e enxergar como estamos distribuindo o que o alemão Hartmut Rosa (autor da noção de aceleração social do tempo) chama de recursos temporais.
Ajuda também a entender se estes recursos estão sob nossa governabilidade (e, portanto, a alocação deles é uma escolha) e que parte deles está comprometida com atividades que são inevitáveis ou obrigatórias (trabalho, deslocamento na cidade, cuidado com os outros, etc).
E aí normalmente acontecem duas revelações bem doloridas: uma é a de que é cada vez mais escasso o tempo livre (neste caso, livre de obrigações e de trabalho); e a outra é a de que em função da pressão (real e também cultural) que sofremos pela produtividade e pela alocação total de tempo para as obrigações, nos sentimos culpados(as/es) quando usamos o tempo para desfrute pessoal.
É a tal da culpa temporal.
Não são poucas as pessoas que relatam sentirem culpa quando usam seu tempo para não fazer nada, para fazer algo de que gostam, para apenas desfrutar ou mesmo para estar entre amigos(as).
Mais um sintoma de que estamos doentes de velocidade.
E mais um sinal de que esta doença de velocidade não vai ser curada com saídas individuais.
O exercício que permite que visualizemos as questões individuais se projeta para questões coletivas, quando elas são comuns (sensação de falta de tempo para o que importa, culpa pelo uso “inadequado” do tempo, aprisionamento na cultura da produtividade, sensação de exaustão permanente, etc).
Ao concluir o exercício, costumo chamar a atenção de quem faz para o fato de que algumas destas sensações são produto da cultura da velocidade, mas também da força que nos faz acreditar que tudo pode ser resolvido com gestão do tempo. A gestão do tempo nos faz acreditar que podemos dizer muitos SIMs e que, com organização, conseguiremos dar conta de tudo. Mas este exercício busca olhar para isso pela perspectiva da consciência temporal: a ideia de que, ao olhar para a forma como alocamos os nossos recursos temporais, precisamos dizer alguns NÃOs, porque não temos todos as mesmas 24 horas, nem vamos conseguir dar conta de tudo ao mesmo tempo. E isso não pode gerar sofrimento e culpa. Mas tem gerado…
Por isso, precisamos – paradoxalmente, urgentemente – falar sobre tempo, alocação temporal, cultura da produtividade, cultura da velocidade e como estamos adoecendo ao criar uma espécie de vigilância do uso do tempo que não nos autoriza a desfrutar.
Nesta aula que mencionei na abertura do texto, falamos sobre a Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han, mas deixo vocês com outro autor admirável e necessário: Antonio Candido. Ele disse: “Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida (…) eu tenho direito a esse tempo; esse tempo pertence a meus afetos (…) A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’”.