De WhatsApp a Netflix, consumo de conteúdo acelerado vira tendência em uma sociedade com pressa. Confira reportagem do Jornal Estadão, para a qual concedemos entrevista.
Hoje, é possível passar um dia inteiro na internet em ritmo acelerado: as principais plataformas digitais já têm ferramentas para aumentar a velocidade de reprodução dos conteúdos. No Youtube, é possível assistir a um vídeo inteiro na metade do tempo. No WhatsApp, você também pode ouvir um áudio até duas vezes mais rápido. O efeito atinge até produções culturais, com opções para ver um documentário na Netflix acelerado em 50% ou ouvir um podcast no Spotify até 3,5 vezes mais rápido.
Para muitas pessoas, acelerar é o único jeito de consumir conteúdos em uma internet cada vez mais abarrotada de informações. A contadora Heloisa Motoki, 43, está acostumada com essa forma de usar a internet: ela acelera tanto os áudios de amigos no WhatsApp (recurso que chegou a todos os usuários do app em maio) quanto vídeos no YouTube – por lá, ela costuma acompanhar treinamentos para o trabalho e receitas de culinária.
Dessa forma, diz ela, a “aula” fica mais curta, mas o conteúdo é absorvido da mesma forma. Para Heloisa, a exceção é na hora de ouvir músicas, que ficam na velocidade normal para degustar o ritmo do artista.
“A nossa mente se acostuma com a rapidez e, com isso, ganho tempo”, explica ela, cuja filha, de 16 anos, também adotou essa agilidade no YouTube para assistir a anime. “Eu faço muita coisa, recebo muitas mensagens e, com a pandemia, tudo foi para o online. Se eu não acelerar, não dou conta com o pouco tempo que me resta.”
É comum navegar pelo YouTube, por exemplo, e ler comentários de usuários dizendo que determinada música fica mais “animada” em velocidade 1,75 (ou seja, 75% mais rápida). Existem também casos em que espectadores de plataformas de streaming “apertam o passo” no ritmo da série para pular momentos considerados massantes – a Netflix implementou a ferramenta de aceleração em julho do ano passado.
Não é possível dizer se são esses recursos que nos deixam mais acelerados ou se são as pessoas que exigem soluções que ajudem a superar essas dores. Como no exercício sem resolução “quem veio primeiro? O ovo ou a galinha?”, trata-se de uma pergunta cuja resposta não importa para o problema. Para especialistas, o ponto central da discussão são as consequências de toda essa pressa.
A psicóloga Andrea Jotta, pesquisadora do Janus (o Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), afirma que a tecnologia acompanha o uso das pessoas, que são quem têm a autonomia sobre como vão utilizar essas ferramentas no dia a dia. “A aceleração de qualquer conteúdo vem por causa do excesso de informações”, aponta, citando que a pandemia potencializou esse cenário. “Não é possível consumir tudo o que está na internet e não é nem saudável buscar esse conhecimento todo. Por isso, temos de fazer escolhas.”
Andrea dá um exemplo: uma série de streaming é criada para reter a atenção do espectador, seja por truques de roteiro, seja por poderosos algoritmos de recomendação que mantêm o usuário na plataforma. O usuário pode escolher entre consumir aquilo da maneira que foi planejado, acelerar o tempo, pular episódios ou abandonar. Em todas, a decisão cabe ao indivíduo e as ferramentas estão ali para serem utilizadas ou não, diz Andrea: “É preciso fazer o consumo saudável da internet, sem extrapolar limites.”
Ainda não há detalhes científicos sobre o impacto dessa aceleração no psicológico das pessoas. Contudo, há quem já esteja sentindo efeitos dessas ferramentas.
Para a advogada Thaís Vargas Binicheski, 26, que aumenta a velocidade dos áudios recebidos no WhatsApp para ganhar tempo no trabalho, a vida “offline” está parecendo mais agitada também – ela tem notado que as pessoas estão falando mais rápido depois de acostumarem a ouvir com tanta rapidez. “Conversando com alguns amigos, eles me disseram que também têm essa sensação. É um reflexo dessa ferramenta”, diz.
Na visão da professora de jornalismo Michelle Prazeres, da Faculdade Cásper Líbero e criadora do movimento Desacelera SP, as empresas de tecnologia, como o Facebook (dono do WhatsApp) e o Google (do YouTube), se aproveitam dessa sensação “latente” de urgência na sociedade para implementar esses recursos, solucionando dores que partem dos usuários, soterrados de mensagens recebidas e conteúdos recomendados.
“Ao mesmo tempo, esses aceleradores são vistos como livre-arbítrio, mas as pessoas se entregam ao imperativo desta época, em que a velocidade é uma violência”, afirma Michelle, esclarecendo que o uso dessas ferramentas não pode ser criticado de forma unilateral porque pode trazer benefícios individuais, como em situações de emergência. “Mas, do ponto de vista coletivo, daqui a um tempo, isso vai ter reverberações no jeito que as pessoas conversam não só no âmbito da tecnologia, mas das relações humanas.”
Michelle levanta o ponto de que essas ferramentas podem “desumanizar” as relações. Um exemplo é uma conversa entre amigos, que, ao usar o áudio acelerado, alteram a entonação da voz e eliminam pausas dramáticas ou hesitações. “Em uma obra artística como uma série de televisão, o artista pensou a duração daquilo sob determinado ritmo. E isso também faz parte da arte. Se você pega a temporalidade e acelera, você descaracteriza o produto e desumaniza”, explica.
A psicóloga Andrea, porém, lembra que a aceleração no WhatsApp, por exemplo, faz parte de uma comunicação assíncrona, em que as duas partes da conversa estão em momentos distintos. “Ao contrário de um telefonema, que é em tempo real, aquele sentimento que expressei no áudio pode já ter desaparecido quando a outra parte, horas depois, escutou”, observa. “O áudio está fora do tempo.”
Além dos áudios do “zap” acelerados, quem navega na internet sente que conteúdos digitais como um todo estão mais curtos – e não só porque foram acelerados por ferramentas. É como se, para consumir mais e mais, tudo tivesse sido enxugado.
Revista americana especializada em música, a Billboard publicou, em 2019, que as canções mais tocadas nas rádios dos Estados Unidos estão 30 segundos mais curtas do que em 2018, algo que pode ser atribuído às plataformas de streaming, como Spotify – quanto mais curtas, mais as músicas podem ser reproduzidas repetidas vezes, aumentando o número de visualizações para o artista e gravadora, que faturam mais com o “hit”.
Outro fenômeno está no aplicativo chinês TikTok e no concorrente Reels, do Instagram, que naturalmente trazem conteúdos rápidos. Neles, criadores de conteúdo sintetizam memes e histórias em até um minuto e meio de material, com velocidades que podem assustar os mais velhos. Como consequência, o conteúdo se torna mais fácil de ser viralizado.
“Se assistirmos a vídeos antigos de influenciadores conhecidos, eles tinham conteúdos de até uma hora, mas hoje existem métricas que dizem que esses materiais não eram vistos até o final”, explica o professor Fábio Mariano Borges, da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Para ele, como remédio contra a sociedade acelerada, caminhamos para mensagens objetivas e sem rodeios. “Hoje, ter síntese é o futuro, apesar de termos sido educados para sermos prolixos.”
Apesar desse cenário de urgência sentido pela sociedade, Borges acredita que essas ferramentas não vão tomar a experiência de filmes de longa duração ou grandes obras literárias. “Não dá para falar que o mundo vai abolir tudo o que for demorado. Vai haver espaço para aquilo que se justifica e que tem sua importância.”