É possível encontrar um balanço mais harmonioso entre a cadência da alma e o compasso do mundo atual. Em tempos de tanta aceleração, o segredo está em criar espaços no cotidiano para se afinar ao ritmo interior, que confere sentido
Texto: Raphaela de Campos Mello, da Revista Bons fluidos
Essa cena ilustra bem o descompasso entre o tempo da alma e o relógio do mundo atual, senhor do senso de urgência – parece que tudo está o tempo todo por um fio. Numa dimensão, a vontade de fruir; na outra, a necessidade de correr para eliminar um dentre tantos deveres da agenda. Como encontrar um balanço mais harmonioso
entre esses dois pontos?
A pergunta aflige muita gente. Afinal, quem não sente no corpo, na mente e no espírito o desgaste gerado pela aceleração constante, pela ânsia de dar conta de uma pilha de afazeres que só se acumulam, produzindo a sensação de que os dias encurtaram, e ainda manter-se conectado aos inúmeros chamados provenientes do universo digital? “No século 21 nos cobramos permanecer em modo on, jamais off , pois não queremos ficar para trás. Esse estado de alerta eleva a taxa de cortisol, o hormônio do estresse”, observa Edison de Mello, médico carioca fundador do Akasha Center, na Califórnia, e especialista em medicina integrativa – vertente que trata o indivíduo globalmente, e não sintomas isolados. “Não somos mais donos do nosso tempo, já que, por causa da tecnologia, estamos disponíveis aos outros 24 horas por dia”, complementa a psicoterapeuta paulista Lucia Rosenberg.
E, para agravar o quadro, continuamos acreditando e obedecendo ao mito de que tempo é dinheiro. É por isso que o marcapasso frenético das sociedades capitalistas equipara a rapidez à produtividade, à e ciência e ao desempenho excelente. “O mundo das conquistas externas se tornou mais importante do que a realização interna, o que se reflete na nossa relação com as horas”, opina o terapeuta holísticos Marcos Simões, de São Paulo. Para atender a uma determinada ideia de sucesso, não podemos perder nenhum minuto, temos que ser úteis o tempo todo, temos que ser “férteis” o tempo todo.
O perigo de viver pulando de um evento a outro, nessa tensão constante, é o de perder a paz de espírito. “O que falta cada vez mais é a contemplação das coisas, a tentativa de transformar as vivências que nos tocam emocionalmente em experiências e assim torná-las acessíveis como experiências interiores, que possam ser revividas, lembradas como marcos do desenvolvimento da identidade autobiográfica”, escreve a analista junguiana suíça Verena Kast, autora de A Alma Precisa
de Tempo (ed. Vozes). Como tudo acontece rápido demais, perdemos o significado da vida, a capacidade de simbolizar e absorver o vivido, o que “achata” e empobrece o cotidiano, depauperado de mergulhos profundos e voos a perder de vista. “Na correria, deixamos escapar o tempo da imaginação, do devaneio, da saudade, da intuição. Somente na pausa conseguimos ouvir nosso coração e dar ouvidos aos sonhos para que se transformem em projetos”, interpreta Lucia.
Chronos, Kairós e Aión
No passado, encontramos modelos mais saudáveis de se relacionar com a ampulheta da vida. Os gregos antigos percebiam o tempo sob três lentes distintas: Chronos, o tempo cronológico, controlado pelo relógio, que nos persegue e devora; Kairós, o ritmo da fluidez, da satisfação, da própria sensação de que se está em alguma dimensão fora do tempo; e, por fim, Aión, o fluir sagrado e eterno, associado ao movimento circular dos astros, o que na teologia moderna corresponderia ao tempo de Deus. Por exemplo, as sucessivas estações do ano remetem ao sentido do eterno, o prazer de conceber uma obra artística demonstra a duração da plenitude, ao passo que o prazo para fechar um negócio ou entregar um trabalho mostra a face de Chronos. Se ao longo de um mesmo dia conseguirmos navegar por essas diferentes esferas, notaremos que é possível dilatar a percepção do tempo. O que nos libertaria da ditadura de um ritmo único e opressor, como o que nos “devora” atualmente.
Também vem da Grécia o exemplo do filósofo Epicuro (341-270 a.C.). O sábio buscava, acima de tudo, encontrar o sossego necessário para uma vida feliz e aprazível, traduzida por um corpo saudável e um espírito sereno. Nessa configuração, não haveria brecha para os temores perante o destino, os deuses ou a morte – e, podemos
adicionar, as necessidades de sobrevivência e a ânsia pelo consumo que nos levam a correr tanto hoje em dia. Para ser feliz, pregava Epicuro, o homem necessitava de três coisas: liberdade, amizade e sossego para filosofar. Questões fundamentais da vida não combinam com velocidade.
Na cartilha epicurista caberia muito bem o conceito de ócio criativo, cunhado pelo filósofo italiano Domenico De Masi. O tão desejado intervalo para fazer
nada – o “dolce far niente” dos italianos, consiste em deixar que a alma e o corpo digam que rumo desejam tomar naquelas horas soltas. Pode ser que o ócio nos leve para a rede, para um parque, para o cinema, para o museu.
Para isso, a culpa deve ser eliminada da mente. Ela aparece porque aprendemos que ir com mais calma é coisa de gente preguiçosa (pecado mortal em um mundo de demandas ininterruptas ou porque não nos sentimos em dia com nossas obrigações (sempre existe algo por fazer). Quando isso acontecer, devemos dizer a nós mesmos que a vida também é feita de vazios, momentos de inatividade ou de ações motivadas pelo bel prazer de saborear esses instantes preciosos. Sem ócio, abandonamos o mundo interior. Qual o ônus? Insensibilidade. E, sem tempo para sentir, você só reage.
Alinhamento natural
Assim como a alma, o corpo merece se ajustar à sua própria natureza, ou seja, aos ritmos fisiológicos. E calibrar essa sintonia é algo que só pode acontecer no reino da tranquilidade.
Marise Berg, nutricionista carioca especializada em ayurveda, lembra que, de acordo com a tradição milenar indiana, somos frutos da interação entre corpo, mente e consciência. A ciência nomeia esse alinhamento como ritmo circadiano (o relógio biológico). Trata-se da sincronia fisiológica que ocorre no nosso corpo pelo
estímulo de agentes da natureza como a presença ou ausência de luz do sol, as estações do ano, a temperatura e seus impactos sobre o sono, o apetite, o humor.
Na ausência de luz, por exemplo, o corpo produz melatonina, hormônio que induz ao sono. Na presença dela, a produção desse mesmo hormônio é inibida, levando
ao estado de vigília. Quanto mais atentos e sensíveis nos mantivermos em relação a esses movimentos naturais, mais respeito teremos pelo funcionamento orgânico.
A alimentação é uma possibilidade para restaurar essa equalização se, em vez de encarar as refeições apenas como um meio para aplacar a fome, fizermos dela um exercício para reduzir a marcha. “Sob estresse, a digestão fica mais lenta e ineficiente, podendo gerar sintomas como azia, sensação de peso e empachamento, gases, constipação ou diarreia e absorção de ciente dos nutrientes”, alerta Marise.
De que tempo realmente precisamos?
“Não precisamos de mais tempo, mas de um tempo que seja nosso. Temos que redescobrir nossa intimidade com o tempo”, defende o escritor moçambicano
Mia Couto. Para fazer esse resgate precisamos nutrir a empatia pelos nossos próprios limites.
“Temos de ouvir nosso corpo como a mãe que escuta e atende seu bebê. Ele sempre nos diz o que está precisando. Cabe a nós interpretá-lo quando nos pede para pegar mais leve, dormir mais, nos alimentarmos melhor”, ensina Mello. Para a ar essa escuta, recomenda o médico, reserve alguns minutos pela manhã para estar consigo mesmo antes de disparar porta afora atropelando tudo pela frente ou de ligar o computador ou o celular. Vale meditar, respirar profundamente, sentir gratidão por estar vivo ou simplesmente mentalizar que o dia será proveitoso.
Outra lição é entender que em alguns momentos teremos de acelerar e em outros, reduzir o ritmo. Apertar e afrouxar, contrair e expandir, como o coração, os pulmões, o útero, o universo. “Não é bom polarizar nem para a correria, fonte de ansiedade, nem para a tranquilidade excessiva, que pode resultar em letargia e procrastinação. Se
o nosso ritmo nos incomoda de alguma maneira, precisamos fazer pequenos ajustes no estilo de vida de acordo com o nosso perfil, sempre buscando o equilíbrio com intenção e foco”, frisa Simões. Somente quando nossos limites estão claros dentro de nós é que conseguimos nos impor perante a roda viva.
Nessa levada, vamos abrindo pequenas janelas de fruição aqui e ali, como tomar um chá enquanto contemplamos um jardim, namorar a Lua, parar para apreciar um músico de rua, massagear os pés antes de dormir. É igualmente interessante estender certos procedimentos tornados mecânicos: preferir a escada no lugar do elevador, chegar à padaria pelo trajeto mais longo enquanto se percebe a respiração, o humor, os sentimentos que transitam naquele momento pelo coração, deixar-se levar por
uma conversa gostosa sem checar a hora a cada cinco minutos ou fuçar no smartphone com medo de estar perdendo alguma novidade. Em suma, como ensinam os budistas, fazer-se presente e inteiro em cada gesto, sem se deixar levar pela agitação.
Para fazer serenar
Colocar a mão na massa, na terra, na tinta, onde quer que os sentimentos possam ser canalizados, é outro excelente convite para aquietar a mente e o espírito. Todo fazer manual requer um tempo próprio, o que inevitavelmente nos sequestra da urgência e nos posiciona no lugar da alma, a partir do qual nosso íntimo pode se serenar.
A ceramista baiana Silvia Lopes conhece bem o poder de desaceleração da argila. Mulher atarefada, turbilhão de energia, ela sempre duelou com o relógio para dar conta dos seus múltiplos afazeres. Para sua sorte, a cerâmica lhe mostrou que certas coisas nessa vida exigem vagar. “Ela é feita em etapas: a modelagem, a secagem, a queima, a pintura e, dependendo da técnica, nova queima. E ai de quem pular alguma fase”, brinca a ceramista, que, por mais agitada que seja, quando está com a mão no barro esquece até que existe tempo. “É preciso estar atento ao ritmo da alma. É ela a grande sábia. É ela que determina a nossa maneira de lidar com o senhor das horas.”
Quando alinhamos os ponteiros internos ao relógio do mundo, desabrochamos. “Nos tornamos mais saudáveis, bem-humorados, apaziguados, enfim, recuperamos a excitação de viver, além de passarmos a decidir com clareza como e com quem queremos passar as horas, os minutos”, assegura Lucia Rosenberg. É quando somos capazes de decretar que tiraremos o dia para nos organizar internamente ou que desligaremos o celular por um período determinado. Nessas situações, o tempo volta a ser nosso e, em sua esteira, a paz de espírito, para conseguir escorrer – sem afobação – junto com as areias dessa misteriosa e sublime ampulheta chamada vida.